Com o arvoredo crescendo em minha varanda, passei a receber a visita sistemática de borboletas, abelhas, vespas, minhocas, lagartixas, aranhas, morcegos e aves, muitas aves; se isso acontece com meia dúzia de vasos, imagine se seu prefeito tivesse vontade
Meu domingo começou com a inusitada visita de um casal de pássaros muito grandes (para os padrões urbanos) pousados na grade da varanda. Comentei em outras colunas que, durante a reclusão forçada proporcionada pela pandemia, virei a louca das plantas e transformei minha varandinha num pomar com mini-horta. Além dos temperos que utilizo nas refeições, as plantas geraram benefícios ainda maiores: o sol da manhã durante o verão proporcionou um ambiente livre de mofo e ácaros. Mas e o sol durante à tarde? Um transtorno sem fim, aquecendo pisos e paredes, me fazia ter a sensação escaldante do inferno, só que em meu lar. Com o arvoredo crescendo firme e forte nos vasos, não só a sensação térmica melhorou como também passei a receber a visita sistemática de borboletas, abelhas (com e sem ferrão), vespas, minhocas, lagartixas (coloquei nome em todas!), aranhas, morcegos e aves, muitas aves, que se alimentam das frutas do pomar.
Ao pesquisar, identifiquei que o tal casal de “passarões” que apareceu na minha varanda é de uma espécie rapinante, ou seja, um simpático casal de carcarás. Juntamente com as corujas, eles pertencem à Mata Atlântica. São espécies endêmicas, pertencem, em tese, ao ecossistema local. Moro numa região central, repleta de obras e barulhos provenientes de um eixo de estruturação da transformação urbana na cidade de São Paulo. Encontrá-las aqui foi uma inusitada e agradável surpresa, apesar do horror em que o bairro se transformou nos últimos anos. Fui atrás da publicação anual dos dados do Inventário da Fauna Silvestre do Município de São Paulo 2021, que encontra-se vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, e li que o número de espécies registradas para a cidade subiu de 1.121 para 1.306 (entre 2018 e 2021) em função da ampliação do estudo, que incorporou 28 áreas novas, totalizando 163 áreas e cinco corpos hídricos.
Não sei se o leitor concorda comigo, mas, se meia dúzia de vasos numa varanda de apartamento trazem tantos benefícios para a qualidade de vida urbana e resgatam timidamente a fauna local, imaginem como seria a sua vida e sua cidade se os planos diretores municipais apresentassem programas para conectar todos os espaços livres públicos e se, seus prefeitos, secretários e vereadores tivessem alguma vontade política de realizá-los. Se, por exemplo, em vez de estacionamentos de carros em ruas e avenidas, as vagas fossem transformadas em jardins lineares repletos de árvores e arbustos que conectam praças e parques urbanos, transformando-os em corredores verdes, locais com temperatura amena e repleto de sons de aves. Situações como a descrita acima são parte de um conjunto de intervenções que vem sendo realizado com sucesso em capitais de países do continente europeu há anos. Por aqui, temos textos e algumas intervenções que raramente são concluídas no processo de uma vida. Quem sabe meus bisnetos, já adultos, conseguirão presenciar a finalização dos planos atuais.
Quando inseridos nos bairros e cidades, os corredores verdes, como o acima sugerido, exercem, em alguns casos, a função de corredores ecológicos, servindo de habitat para a fauna e flora. Em paralelo, melhoram a qualidade do ar e das águas e proporcionam, à população, espaços livres para o exercício da sociabilidade, recreação e lazer. Eles são parte da infraestrutura verde, um universo ainda maior de planejamento ambiental. Para atender as metas previstas pela Agenda 2030, que pretende, dentre outras diretrizes, descarbonificar o planeta e reduzir as consequências das mudanças climáticas, o conceito foi ampliado e, hoje, atinge não apenas as tecnologias, os projetos, a manutenção, o uso dos edifícios, suas interferências e impactos na vizinhança e no bairro, mas também a viabilidade de implantação dos novos empreendimentos construídos a partir de critérios definidos pela estrutura ecológica local. Aqui, não conheço nada parecido (planos diretores e regulações urbanísticas que impeçam a construção de edifícios em áreas ecologicamente frágeis ou que tenham importância para a recarga de um aquífero subterrâneo, por exemplo).
A partir do exposto, a supressão de nascentes e fragmentos vegetais, o tamponamento de córregos, rios associados à ocupação desordenada de suas margens, que levam ao rebaixamento de lençóis freáticos e destruição dos demais elementos do ecossistema local, deixam de ser prática sistemática das construtoras (permitidas por regulações urbanísticas provenientes das prefeituras) e passam a ser inaceitáveis na constituição das cidades contemporâneas. Ao fragmentar as áreas verdes em pequenos espaços (praças, parques e outros) que se espalham aleatoriamente pelos bairros e distritos, o fluxo entre espécies da fauna e da flora dificulta o deslocamento de animais, a dispersão de sementes, o aumento da cobertura vegetal e prejudica a qualidade de vida urbana ao expor a população aos riscos de inundações, alagamentos, poluição do ar e ampliação de partículas em suspensão, aquecimento e ilhas de calor, vendavais e outros fenômenos que o leitor já vivenciou em sua cidade. Recentemente, presenciei moradores de bairro próximo esbravejando, numa manifestação pacífica, contra ações da prefeitura que afetam nascentes e córregos locais, permitindo a construção de edifícios sobre as águas.
Aqui em São Paulo — e em várias outras cidades —, infelizmente, os cidadãos precisam clamar por ações sensatas de recomposição dos ecossistemas existentes para, quem diria, que os agentes públicos (prefeitos e demais eleitos) adotem as questões ambientais como premissas de desenvolvimento urbano. É como se implorassem o direito de ter fauna, flora e ecossistemas preservados para a melhoria das condições urbanas e do planeta Terra, cuja data comemorativa ocorreu na última sexta-feira, dia 22 de abril. Entendo que, lá no passado, vilas e cidades tenham sido erguidas como ambientes fortificados, murados, com o objetivo de proteger a população de animais selvagens, por exemplo. Essa visão retrograda e daninha que ainda permeia algumas mentes de políticos que atuam, especialmente, no ambiente legislativo e executivo em Brasília devem ser atualizadas (ou pela integração da ciência, ou pela exclusão, por meio do voto consciente), acompanhando as boas práticas de planejamento que fundem e integram as ações humanas aos ecossistemas.
Você sabe se o prefeito de sua cidade incluiu programas de proteção à fauna e à flora no plano diretor?
Saiba mais na coluna de @helenadegreas:http://anonymto.com/?https://t.co/ylhe6oGuKE
— Jovem Pan News (@JovemPanNews) April 26, 2022
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
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