Lobos são bem-vindos aos espaços públicos; os homens, nem tanto


Meu colega de pesquisa enviou-me um vídeo bem curtinho em que um lobo-guará é recebido no adro da Igreja do Caraça; no outro dia, fui ao Brás e acabei tomada por um mal-estar ao ver um templo cercado

Eduardo Franco/Santuário do Caraça/DivulgaçãoLobo-guará é um ilustre visitante do Santuário do Caraça, em Minas Gerais

Meu colega de pesquisa, o arquiteto Antonio Busnardo, enviou-me um vídeo bem curtinho, daqueles que levantam o astral e deixam a gente mais feliz. Larguei as notícias que mostram o triste Brasil no qual vivemos para me entreter com um bicho incomum em áreas urbanas. Durante visita técnica para registrar formas contemporâneas de ocupação e uso dos espaços religiosos, ele conheceu um simpático lobo-guará (Chrysocyon brachyurus), que é recebido todas as noites no adro da Igreja do Caraça, com a bênção da padroeira Nossa Senhora Mãe dos Homens. No vídeo, era possível ver um animal de membros longos, pelo avermelhado, altivo, esguio e elegante, misto de cachorro doméstico com lobo selvagem, alimentando-se tranquilamente em frente a um conjunto de turistas que o observavam em silêncio.

Ele me contou que, durante o dia, as áreas livres e até as edificações são compartilhadas com os animais. Em imagens, ele registrou inúmeros momentos em que os visitantes e moradores misturam-se aos canários, jacus (Penelope Jacquacu) e vários outros animais em perigo de extinção. Desde 1984, a Província Brasileira da Congregação da Missão garante a proteção da fauna e flora local pela Reserva Particular do Patrimônio Natural – Santuário do Caraça, uma unidade de conservação de âmbito federal, gravada com perpetuidade através da Portaria do IBAMA, nº 32. Ao menos, estes animais não sofrem o mesmo estresse e perigos que a pobre onça encontrada recentemente por um garoto no banheiro de uma escola mineira sentiu. Em outra coluna, comentei que as cidades vêm se esparramando sobre áreas rurais e que os animais, na falta de alimento, vão buscá-lo nas cidades que, graças aos resíduos, os tem fartos e prontos. Desta vez, a onça teve sorte. Foi capturada pelo Corpo de Bombeiros e, depois de examinada, solta em seu habitat natural. 

No outro dia, fui ao Brás, região de comércio popular de roupas e tecidos na cidade de São Paulo, para comprar materiais de armarinho. Passei em frente a uma igreja católica, construída no início do século passado e ampliada a duras penas ao longo das décadas. O adro estava cercado. No seu interior, era possível ver, por entre as grades, tendas brancas montadas como para um evento. Imagino que serão celebradas as comemorações em homenagem a Santo Antônio (13 de junho), São João (24 de junho) e São Pedro (29 de junho). Nas outras duas esquinas, vi um templo de dimensões faraônicas, igualmente cercado e vigiado por vários homens. Na outra esquina, o cercamento utilizando vidro. Os três propõe-se a receber fiéis.

Fui tomada por um mal-estar profundo, por uma tristeza enorme. Deve haver explicações para o cercamento, certamente, mas nada que possa abrandar o sentimento de falência da vida social pública. O adro ao qual me refiro é o conjunto de espaços livres que ficam em frente, laterais e fundos das igrejas. Conhecidas como “praças”, são espaços que reúnem pessoas e conferem identidade a bairros e comunidades. Tem uma razão de ser, sua criação arquitetônica e urbanística tem uma fundamentação histórica atrelada a princípios e valores de cunho religioso. Em templos e demais espaços religiosos, o cercamento também não deveria ser comum. Menos ainda a atuação de vigias. Estranho tudo isso.

De acordo com Antonio Soukef, arquiteto especialista em patrimônio arquitetônico, o adro é como um espaço singular de passagem entre o mundo material e o mundo imaterial. Nas igrejas franciscanas, onde eram mais comuns, ele se tornou um local agregador de manifestações públicas, indissociável da conformação do lugar. Com o crescimento das cidades, com poucas exceções, ele desapareceu completamente ou se transformou em uma área de desafogo defronte à igreja. Nesses casos, ainda mantendo sua função de local público. E assim deveria permanecer, não cedendo espaços para um comércio privado desenfreado, como lamentavelmente tem ocorrido com demasiada frequência. O adro de uma igreja, quando não destruído pelo sistema viário que priorizou há décadas o automóvel em detrimento ao cidadão nas grandes cidades, foi sendo transformado, mobiliado, arborizado e equipado para o uso de fiéis e não fiéis que encontram no cotidiano atarefado o espaço para reflexão, descanso ou recreação.

Quando um espaço público é cercado, rompe-se mais um laço fraternal que, ao impedir a congregação entre grupos cujos valores, crenças e comportamentos são distintos, colabora na destruição da empatia, da solidariedade entre cidadãos e ratifica a individualidade e a fragmentação do tecido social. Ao cercá-lo, o acolhimento quase maternal daqueles que buscam o consolo na fé, foi rompido pela comercialização e a imposição da “segurança” por meio da seleção de quem pode ingressar ao espaço sagrado, daquele que não é bem-vindo.  Do lado de fora da grade, o cotidiano mundano, com pessoas em situação de rua, catadores e pedintes. Para dentro do portão e gradil, o mundo das feirinhas juninas. Nos dois casos citados ao longo da coluna, em nome de preservação ambiental e da sobrevivência em nome do turismo, os lobos são bem-vindos. Já no segundo caso, os homens, nem tanto.

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*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.





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